terça-feira, 26 de maio de 2020






       É SÓ POR CAUSA DAS COISAS


    


       Aqui na aldeia a morte tem andado numa azáfama sem freio. Silenciosa como sempre, manhosa como de costume, ajudada pela maleita que a todos atormenta, lá vai ela, calçando as pantufas de quem nem assenta os pés no chão, rebentando com os ferrolhos das casas, mesmo as mais ilustres para carregar um ou outro que, numa relutância de ais, não se conformam em ir, mas vão.
        Há os que dizem, os mais sabidos das coisas consideráveis que a tipa parece afogueada como qualquer vendedor de uma firma de electrodomésticos apostado em atingir, rapidamente, os objectivos anuais de vendas.
         Aqui na aldeia já se foram uns quantos e os outros, temendo as coisas consideráveis do além desconhecido, não culpam a senhora dona morte com medo que ela, despeitada, lhes rebente com a fechadura e os arraste pelo dedo grande do pé direito para os levar para parte incerta que, ninguém sabe onde é, mas todos gostariam de saber. Essa coisa que os antigos dizem - quando a malvada carrega alguém na padiola dos defuntos - esbarra num cruzamento com três setas a indicar; azul o céu, laranja o purgatório e vermelho o inferno é coisa que os mais novos acreditam que assim seja porque, habituados que estão ao uso do gps, não acreditam que a morte, antiquíssima como é, seja dada a modernices e necessite das setas para não se enganar no sítio onde vai depositar o desgraçado a quem lhe retirou o ar.
       Mas como culpas são culpas e os confins do mistério de Deus são insondáveis o pessoal aqui, na aldeia, começou a olhar de soslaio para o coveiro. Chico André chama-se o homem. É esparso de pensamento, arreigado à duvida, deserdado de muito saber e sustenta com o que lhe dão umas leiras que cultiva e os trocos que recebe por cada funeral uma prole de filhos raquíticos com que foi emprenhando o bucho da mulher escanzelada, tudo na graça do Senhor. O pessoal assusta-se quando o vê. Mudam para o outro lado do caminho para não respirar o mesmo ar que ele. Não o salvam como era costume antes da morte andar neste desacato. Afirmam que têm um pacto com a malvada e pensam que ela lhe dá alguma comissão por cada um que enterra. Quando a junta de freguesia decidiu pagar-lhe um tanto por cada enterro então foi o diabo. Ninguém lhes tirou da cabeça que há um pacto entre eles. Morte, junta e coveiro.
        Aqui, na aldeia, Chico André o coveiro, passou a andar abatido, acabrunhado, revoltado, doente e diz-se injustiçado. Depois do esforço de enterrar bem fundo, todos aqueles que a malvada se lembrou levar de súpeto, a ingratidão do povo, pesou-lhe bem fundo. Agradecimentos não queria. Isso era pedir muito a quem não se lembra do sacrifício dos que vivem no lado negro da vida.
      Chico André, definhava a indiferença com que o atormentava aquele gente mal agradecida. Que culpa tinha que a malvada carregasse com tantos de cada vez pelo dedo grande do pé direito? O que tinha ele a ver com isso? E, se não fosse ele, os desgraçados ficavam de papo para o ar apodrecer ao sol? E,  se não fosse ele, outro haveria de ser a fazer a função? Ou não é assim?
        Numa tardinha, depois de ter armazenado mais um, no buraco fundo que abrira na véspera, Chico André, o coveiro, desabafou com  Zé Vesúvio, o taberneiro:
           «Não querem dar-me a mercê por os enterrar? Pensam que sou eu que tenho a culpa de irem desta para melhor? Zurrapa de gente, lixam-se que quando a malvada me puxar pelo dedo grande do pé direito algum filho da mãe vai ter que me meter na cova bem lá no fundo. Gostava de saber quem? É só por causa das coisas.»
         
           
         
        
         
         

sábado, 23 de maio de 2020


          UMA HISTORIA IMORAL




          
        O senhor doutor juiz "Boticário" - assim o tinha apelidado -  por se orgulhar de aplicar as leis, tal qual um acto de sobranceria desmedida, para serem um remédio eficaz contra as moléstia sociais que corrompiam o  mundo. Aqueles que tinham o azar de passar pela alçada da sanha judiciária do senhor doutor juiz, fosse qual fosse o motivo, não passavam de bandidos sem eira nem beira, malandrins da pior espécie ou criminosos sem ponta de escrúpulos para poderem ser redimidos dos seus erros. 
         Portanto; porrada neles.
        O senhor doutor juiz "Boticário" durante as enfadonhas audiências entretinha-se a tirar macacos do nariz com a enorme unha do dedo mindinho da mão esquerda e limpava-os, dissimuladamente, na aresta da secretária para, de seguida, escarafunchar a cera das orelhas que depositava no mesmo local isto, enquanto espremia com tenaz ferocidade, um meliante qualquer que a justiça lhe trouxera na balança do julgamento e que não passava de um infeliz desgraçado caiado no ramal errado da vida.
        O senhor doutor juiz "Boticário" não dava nenhuma relevância ao seu acto porcalhão por entender que alguém, um desclassificado qualquer, haveria de limpar a javardice de macacos e cera que ia depositando na aresta da secretária. Seria um reles funcionário de limpeza que era para isso que servia a sua inépcia de desclassificado social. O senhor juiz gabava-se, para o seu intimo tortuoso, que assim estava a contribuir para a criação e manutenção de mais um posto de trabalho.
        Aliviada a consciência que não tinha, interrogava o que lhe surgia pela frente como se já fosse um condenado e a exéquia do julgamento, não fosse  uma burocrática formalidade. Exercia o seu poder como quem cavalgava nenúfares porque o mundo era para ele um charco de indiferença pelos que boiavam à sua volta. Sabia-se um predestinado e envaidecia-se como se fosse um espelho em que reflectia a sua a insensibilidade infalível.
          Em conversa com os outros magistrados, o senhor doutor juiz "Boticário" judiciava com firmeza que os do povo, porque malandraços impenitentes, gastadores inveterados, pedinchões persistentes, alarves imorais, gente sem modos, mal vestidos, a cheirar a bedum  e a torresmos ensebados, mais parecendo um refogado de cebola queimada pela miséria, tinham que ser condenados a padecer penúrias na cadeia onde poderiam de vez em quando tomar um banho e aprender hábitos de higiene.
         Ao ricos o que é dos ricos! dizia, clamando para não haver mesturanças.
         O senhor doutor juiz "Boticário" tremia - afinal também tremia - diante da bata branca do médico que aturava as maleitas físicas daquela alma desafinada. Um dia o senhor doutor juiz "Boticário" tremeu mais do que o habitual, muito mais, quando a bata branca com a indiferença de quem aplica uma sentença irrevogável lhe disse, numa voz enviesada pelo desdém que a sentença decretada era: Cancro! Cancro já em estado adiantado que não lhe dava mais do que seis meses de vida. Nada mais.
        O senhor doutor juiz "Boticário" entretido que andou a matar a esperança a tudo o que lhe aparecia pela frente, tinha-se esquecido que a morte existia, existia mesmo, e que, inexoravelmente o condenara sem qualquer esgar de piedade como ele fazia aos desgraçados que lhe passavam diante da sua unha grande de tirar macacos do nariz e cera das orelhas e viria buscá-lo para cumpri a sentença decretada.
     O senhor doutor juiz "Boticário" cortou a unha grande antes da morte chegar? Uma dúvida que persiste.
         
         
        
          
        

terça-feira, 12 de maio de 2020







            O DESABAFO


       

            Dona Cremilde é uma viúva em tirocínio para encontrar quem ainda lhe possa tratar da figura. A procura desse aconchego leva-a a bisbilhotar tudo o que pode num andarilho sem cessar. Faz da reforma dos correios, onde foi telefonista e da pensão do falecido Edmundo, segundo sargento dos serviços de intendência do exército, um investimento em viagens para esbater a solidão e amealhar contactos que lhe possam valer o tal aconchego.
            A propósito da idade diz que pouco lhe interessa, mesmo que tenha que arrastar a persistência de uma dor no lombago e uma anca que já começa a dar de si. Um arrelia que não lhe esmorece a avidez pelos passeios. Ela que passou uma vida sentada a atender telefonemas, a olhar para um caixote onde encavilhava os fios para transferir as conversas dos que queriam falar e não davam com o caminho, bem merecia esse regalo. Erudita, diz que a passagem dos anos é uma trivialidade de inseguranças para quem não se conhece a si próprio. Dona Cremilde inflama a importância de bem se conhecer, desde a tristeza mais agreste à felicidade mais radiosa.
            É o que diz às outras, nas tardes de conversa no Café do senhor Augusto, entre um chá de camomila e um pastelinho de nata, empertigando-se para quem a quer ouvir: -  «Querem que seja um resto? Um sobejo? Um desperdício? Um trapo sem préstimo? Mas eu mando-as para o raio que as partam. E olhem que eu frequento sempre que posso e posso muitas vezes o salão da Menina Hortênsia que me colora os cabelos para arreliar, ainda mais, as invejosas.»
           As viagens era uma forma de prolongar a vida, dizia-lhes, aumentando a cobiça.
           Depois de ter feito o tirocínio dos cruzeiros onde só encontrou velhos potrancas sem o chispe de marinheiros de tempestades arrebatadoras, Dona Cremilde entretinha-se, agora, a coleccionar  pacotes de excursões com tudo incluído, «uma lindeza», dizia ao senhor Anastácio e este, «que sim minha senhora», a sentir-se enjaulado num autocarro a roncar a impressionante soma do catarro que vinha das idades dos companheiros de excursão que, numa algazarra florida, de máquinas fotográficas em riste, (olha que paisagem tão bonita! e aquele jardim?) iam alegremente a caminho do crematório de uma praia com coqueiros, mar turquesa, sol escaldante, e pulseirinha com tudo incluído.
          Dona Cremilda, sábia, para o senhor Anastácio: -  «A idade é nós sabermos lidar com ela e ver os outros a não saberem lidar com ela... coitados. A mim o que me regala são as viagens. Para quem levou uma vida a atender telefones e a escutar a mudez de um marido que só sabia falar dos mapas do rancho do quartel, desforro-me a aproveitar ir a tudo o que é sítio. O que me custa mais são aquelas excursões que metem muitos museus, os joanetes já não estão para grandes andanças e depois para quê ver coisas velhas para velhos bastamos nós».
          Nada disso, - o senhor Anastácio a dizer-lhe -, a senhora está ai para as curvas e Dona Cremilde, fingindo vergonhas, faces coradas a pedir-lhe silêncio para não contar a ninguém aquele desabafo tão gentil.

sábado, 25 de abril de 2020






         MARILINDA


      


         Hoje nem isso tenho. Um nome.Sou a doente da cama 3, sala 8. Quando a desgraça nos impacienta o destino, logo perdemos o nome. Passamos a ser um número para melhor nos identificarem no emaranhado dos corredores, em que nos asfixiam a identidade. Marilinda chamou-me a minha mãe, mesmo antes de me separarem dela, mal me viu nascer:

         «É tão linda a minha menina. Bendita seja Nossa Senhora de Fátima que lhe deu tanta formosura».

         Eu a imaginar a minha mãe a dizer isso, agora que tenho micróbios estranhos que me vão comendo a parte boa das minhas entranhas e sou só a doente da cama 3, sala 8. E aqui cheguei sem saber como. Mal me tinha habituado a viver. Agora tenho duas cicatrizes retorcidas no lugar das mamas. Foi por ai que tudo começou e foi só isso que me restou. As cicatrizes retorcidas e o vazio. E o estetoscópio do senhor doutor de bata branca, a mexer os lábios, ternos olhos verdes a dizer-me e eu sem o querer ouvir, e eu sem o ouvir, e eu a querer saber o porquê da minha mãe ma chamar Marilinda, sempre tão bondosa a minha mãe, agora uma ausência, uma saudade, o único vazio que me vem ver lá do sítio estranho em que está. Senta-se aos pés da cama 3, sala 8 e diz:

         «Não venhas para aqui que eles queimam-nos as solas dos pés a andar por cima de brasas e esfacelam-nos os joelhos de tanto rezar para nos redimirmos da triste vida que ai levámos e obrigam-nos a andar de rojo para ficarmos a saber onde estão as portas do céu».

         E eu, noite dentro, só silêncio, só ais e gemidos, só cama 3, sala 8, a sonhar com a alma penada da minha mãe que vêm, não sei de onde, a única que sabe onde estou, um pesadelo sem me sair desta aflição solitária. O meu marido quando me viu sem mamas, a pegar no dinheiro que tínhamos juntado e a sair porta a fora, disparado, com medo que o remorso o fizesse tropeçar naquilo que eu era antes, agora Marilinda sem mamas, Marilinda duas cicatrizes retorcidas no sítio daquilo que ele tanto gostava. Marilinda despenhaste-te no precipício da decadência, sem hipóteses de retorno. Marilinda os bichos invisíveis vão roer-te por dentro até se saciarem. E eu ainda a cama 3, sala 8, Marilinda já quase a perder o nome e ele, o meu marido, com medo de olhar para trás, a não querer ver as cicatrizes retorcidas, a fugir, e as vizinhas com cara de dó, mas rabo alçado de gozo a dizerem-me:

         «Marilinda vimos o teu marido a gastar o dinheiro todo com putas de mamas grandes e a última vez que soubemos dele tinha um pacote de vinho barato na mão e discursava para a estátua de um tipo qualquer cheio de dragonas de herói, de dedo em riste, duque de qualquer coisa ou marechal de coisa nenhuma, pouco importa e dorme todo enrodilhado no esconso de umas escadas de onde sai um pivete a mijo requentado».

        E eu, - o que sei que se passa lá fora, para além das paredes da sala 8, cama 3 em que me asfixiaram a identidade sem mamas e duas cicatrizes retorcidas? Espero que os micróbios maus que tomaram conta de mim, esses bichos invisíveis e obstinados, essa crueldade sem rosto, esse vazio de já não ser eu, isso tudo, mais o que quer que seja, acabem o seu trabalho depressa para deixar de ser, definitivamente, Marilinda.

          

     
           

terça-feira, 14 de abril de 2020








     JÁ NÃO SOU AQUELA QUE FUI






    Senhor guarda juro que há anos era outra coisa, isto que está a ver agora, este farrapo com as costelas partidas era a cobiça de muitos homens, todos de beiça untada pelo desejo e eram mais que muitos atrás de mim, pode acreditar senhor guarda, a dizerem-me parvoíces, afoitezas, ordinarices, que tinha um belo par de mamas, que os olhos eram um mar de perdição, e a boca? ai a boca, senhor guarda, tanta tentação de beijos húmidos, peganhentos de saliva desejosa, de línguas enroladas que aqueles malandros pensavam, está bem senhor guarda que eu sei que não vale a pena falar do passado, agora que estou neste estado e depois do que aconteceu, aquele estafermo, ele que me apareceu como um desejo de carne que mal aguentava a falar-me em futuro, família, filhos, coisas assim, para o sério, e eu a escorregar para debaixo dele e a ter que casar às pressas, de barriga empinada e depois do primeiro filho a encher-me o bandulho com mais três, todos de seguida, sem me dar descanso aos ovários e foi nessa altura, um dia, distraída, sem dar por isso que olhei para mim no espelho da guarda-fatos e não me conheci, o que estava ali era um estafermo que não era eu, uma coisa deformada, gorda, as mamas ao dependuro, as ancas uns sacos de carne avantajada e os olhos uns poços de lágrimas à tona do desespero e essa era eu, senhor guarda e ele, aquele animal a dizer-me que agora já nenhum gajo iria olhar para mim, cobiçar-me as mamas e estender a beiça a escorrer o unto do desejo e ele já podia andar pela rua à vontade com a certeza que não iria passear um par de cornos e foi nessa altura que ele caiu no desemprego, parece que deixou de gostar de trabalhar, passava a vida bêbado, diziam os outros, aqueles que andavam nas obras com ele, e logo ele que antes dava com toda a força na pá e no cimento e agora só o vinho, senhor guarda, e passou a aparecer-me todas as noites mais bêbado que uma garrafa cheia de água ardente e depois punha-se a bater-me sem mais nem menos, mesmo à frente dos filhos, a bater-me por tudo quanto era sítio senhor guarda, batia-me muito, mesmo muito e eu sem vintém para poder sustentar as quatro alminhas com aquele animal me empanturrara a barriga e me desgraçara a vida, a sustentar-me com o rendimento mínimo, sem ter para onde ir, sem ninguém que me acudisse, ia fugir para onde senhor guarda? as vizinhas a dizerem; ó mulher um dia destes esse filho da puta mata-te e eu que Deus me perdoe que alívio ia sentir nesse dia mas, para mal dos meus pecados não foi assim, senhor guarda e agora aqui estou eu, depois dele me ter dado aquele enxerto de porrada que me partiu as costelas com os pontapés e eu lhe ter cortado a barriga de alto a baixo com a faca da cozinha que na véspera tinha afiado, sem pensar nisso, assim como assim, sempre o Estado fica a ganhar, popa num subsídio de desemprego e eu é que não sei o que será de mim, nem dos meus meninos, senhor guarda, mas gostava que ficasse a saber que sinto um descanso, uma paz na alma que me consola o desencanto em que vivia de já não ser aquela que tinha sido, aquela que tinha um par de mamas que era a cobiça de todos.

terça-feira, 31 de março de 2020





O ESQUISSO




     Ainda enrodilhadas pela leitura dos Fidalgos da Casa Mourisca e entupidas pela "nona" do Beethoven que acabaram de senhor, as cataratas do Senhor Amadeu não atinaram, mais uma vez, com o buraco da sanita e o mijo matinal amarelecido pela estagnação nocturna, saiu desordenado, circulou ziguezagues, destinos desobedientes e fez um "looping" encaracolado antes de se despenhar no tampo verde desmaiado da sanita que o nevoeiro das cataratas do Senhor Amadeu se esquecera de levantar como de costume.
     Arrastando os chinelos de feltro cinzento, encardidos e encharcados naquela mixórdia morna que acabara de mijar, o Senhor Amadeu voltou para a cama e esperou, paciente que o berro de Dona Etelvina entrasse, numa fúria de arrancar a porta do quarto, e se abatesse com violência nas cataratas do senhor Amadeu que, por essa altura, eram um oceano de indiferença vindo dos lados da solidão.
     «Seu desmiolado, outra vez, a potranquice da casa de banho toda mijada.»
     (As cataratas ouviram a insurgência e mantiveram-se embaciadas pela indiferença vinda do oceano da solidão.)
     «Velho doidivanas qualquer dia passo-me da rosca e corto rente essas peles ao dependuro do que já não tens e enfio no buraco que fica um tubo directo para  a sanita e vais ver que nunca mais mijas fora do penico.»
     O Senhor Amadeu abespinhou-se com a gritaria da Dona Etelvina, virou-lhe as costas desdenhosas e voltou-se para o parceiro da cama ao lado que, alheio ao reboliço, ressonava os acordes dos soporíferos da véspera. Pensou - esta ignorante não sabe nada do que fui nem do que sou. Não sabe que, antes de me sentar ao estirador a esquissar as mais belas obras de arte da arquitectura contemporânea, habituei-me a debuxar as ideias, mijando contra as paredes para libertar a criatividade reprimida na bexiga. Sempre foi assim e sempre será assim.
     Dona Etelvina, uma esfregona num vai e vem, recalcitrava o arrependimento emigrado:
     «E vim eu lá do longe, de S. Vicente, atravessando aquele tento mar para me afogar no mijo de um velho doidivanas.»
     O Senhor Amadeu, agora de papo para o ar, imaginava no tecto do quarto o minarete, (aquele que acabara de esquissar na tampa da sanita) com que remataria os jardins do Palácio das Mil e uma Noite que o Sultão Xariar lhe tinha encomendado.
     Barafustou, esganiçando a voz:
     «Todos os dias a mesma lengalenga. Esta tipa não sabe quais são as suas obrigações? Não sabe o que é o trabalho no estúdio do mais afamado arquitecto contemporâneo? Não sabe que um artista vive concentrado no seu trabalho e não liga importância a detalhes existenciais? Depois dizem ao Sultão que não cumpro os prazos. Tudo por causa da má vontade e da incompreensão do pessoal assalariado.»
     O Senho Amadeu barafustou mais alto, querendo que Dona Etelvina o escutasse mas quase acordou o parceiro do lado que, roncou um grunhido imperceptível.
     «Qualquer dia tenho o Sultão Xariar e a sua guarda pessoal de cimitarra na mão a reclamar que não acabei o projecto do Palácio das Mil e uma Noite.  Esquissar obras de arte com o mijo contra as paredes não é para qualquer um. Só os predestinados. É preciso ter a mão firme a segurar no instrumento para que o traço não saia com tremuras enxovalhadas.»
   
    (Dona Etelvina emigrara pobrezas para cá do tanto mar, para junto dos filhos que viviam nos subúrbios de exclusão da cidade grande na espera que por aqui tivesse um mundo menos custoso. Dona Etelvina era agora o vai e vem de uma esfregona revoltada a desfazer-se num pranto de saudades, a maldizer o destino que a iludira ao substituir o poucochinho, o quase nada, a penúria de lá, pelo cheiro adocicado do mijo requentado e encardido daquele velho amalucado, encaixotado naquele lar de imobilidade em que os filhos o deixaram à espera.)

     Dona Etelvina revoltou-se:
     «Bardamerda seu velho porcalhão, seu maluco mijão, seu desatinado do juízo, seu arquitecto duma porra...»
     O Senhor Amadeu, alheio a qualquer tipo de angustia existencial, proclamou:
     «Amanhã quando me levantar tenho que apurar o traço e terminar o esquisso do minarete do jardim do Palácio das Mil e uma Noite do Sultão Xariar. Estou com uma ideia que passa por colocar uns arrebiques e uma cornucópia na cúpula a imitar um pastel de Belém...»
     O parceiro da cama do lado, o Senhor Aprígio da Silveira, ferroviário, reformado como chefe de estação com o lábio inferior descaído de tanto tocar a corneta a dar a partida aos comboios, interrompeu o ressonar dos soporíferos da véspera, dirigiu-se para gare da estação do Entroncamento, pegou na corneta e nas bandeiras, amarela, verde e vermelha e disse:
      »Velho mijão se queres fazer esses arrebiques e a cornucópia ou lá que porra é essa na minarete do filho da mãe do sultão tens que ter força para mijar até ao céu que é onde o gajo mora mas, para isso. já te falta a força no esguicho. Não sejas doidivanas. Está quieto e calado. Faz como eu, dorme descansado e espera que o comboio traga a malvada na carruagem da terceira classe, porque a gaja é forreta,se lembre de parar neste apeadeiro perdido no desfastio da indiferença e nos leve a ver o tal minarete com arrebiques e a cornucópia ao estilo pastel de Belém no Palácio das Mil e Uma Noite...»

   

quarta-feira, 25 de março de 2020





      MURMÚRIO






     No sítio onde estou chamam-me Murmúrio.
     Dizem que murmuro enquanto durmo. Deve ser dos comprimidos que me dão para sossegar a alma assombrada e dormir o sono solto dos diabos que a apoquentam. Há muito que perdi o sentido do que aqui estou a fazer e de qualquer outro nome que alguma vez me tivessem chamado.
     Só me lembro que, desde sempre, quis «ser futuro»
     Foi o que a alma parda da cigana que vinha esmolar todas as terças-feiras a casa da minha avó me predestinou.
    «Benzadeusestasantaalminha que vai ser futuro»
    Passado o tempo que a «santaalminha» levou a desvanecer-se, vieram os murmúrios e a predestinação da cigana  de «ser futuro», esfumou-se como uma névoa desapontada.
    Agora, no refugo do tempo que passo neste lugar branco em que me puseram a ladrilhar as horas ensonado pelos comprimidos, sou só um murmúrio que quis «ser futuro»
   
     Conto como foi.

     A alma cansada de navegar infortúnios e trepar sobrancerias de possidónios alarves, haveria de me dizer que estava farta de ansiar que tudo fosse futuro e que o futuro não passava de uma invenção maníaca, apinhada pelo desassossego do presente, repisando a mesma coisa dia-a-dia, sem qualquer finalidade que não fosse o esfalfamento de nada inventar para lá da aparência das coisas que são sempre o que são. Este desaforo de desilusão, aconteceu quando, depois de muito me iludir, vi que, até os sentimentos eram mercancia supérflua de bota fora quando o préstimo já tinha passado de validade.
     Foi assim que chegaram os murmúrios.
     Todavia, num alarme espalhafatoso, a alma cansada disse-me que não se iria habituar aos murmúrios porque eles vinham da maldade desordenada das gentes horrendas que me obrigaram a crescer daquela forma, impedindo a predestinação de «ser futuro».
     Um dia a voz roufenha do escaravelho gigante de garras afiadas, de estetoscópio pendurado numa haste disse que os murmúrios não eram uma doença. Eram o cúmulo dos guinchos paranóicos que fui ouvindo pelas cidades de ruas calcetadas com pedras brancas e negras por onde empilhei o desarrumo da vida.
    Nada mais 
    Com voz. de falsete, o estetoscópio continuou a perorar do alto da haste do escaravelho, enquanto escrevia a receita da mesinha para a loucura, dizendo que os murmúrios se obstinaram em asilar-se dentro de mim por nunca ter sabido dizer não à prepotência do azul com que os obstinados donos do mundo pintam o céu todos os dias, nem aos do poder que cuspiam para o lado quando me davam ordens como se fosse o cocheiro das bestas arreadas que levava atrás de mim para os satisfazer, nem ao sufoco das lamurias pedinchonas dos miseráveis a esgravatar a fome na caridade com que os piedosos mascaram vaidades, nem o fado em que sempre suspendi o amor.
     Depois da sentença do escaravelho tive que me consolar e viver com o despropósito dos murmúrios. Conclui que eles vinham das entranhas do passado e se acoitavam na parte de trás da cabeça, assapados, num tumulto de vozes desencontradas, emboscando as dores terríveis que faziam  desfalecer a predestinação da cigana de querer «ser futuro».
    São inconsequentes, os murmúrios.
    Umas vezes trazem lembranças que estão agachadas atrás das moitas do esquecido, outras, lapsos de atenção como aquele de não me lembrar que ontem vesti uma camisa fresca, apropriada para a quentura do estio, quando o frio rachava a lenha para a lareira..Aflijo-me ver o estado decrépito em que fica a minha alma quando tem que suportar a algazarra festiva dos murmúrios, arrastando as lembranças ruins do ruim que foi a minha vida e que me leva a ficar inerte como se tivesse morrido por não ter conseguido «ser futuro».
    Ouvindo os murmúrios como se fossem o vento zumbindo nas altas montanhas que fui escalando, na inconsciência de querer «ser futuro», sinto a amargura de ver a alma a demolir-se, coitada. porque nunca conseguiu libertar-se do escaravelho gigante de garras afiadas que trouxe de lá como o espólio daquela coisa medonha, daquele provérbio de heroicidade escusada, daquele passado requentado que ainda apoquenta a intimidade das minhas entranhas e violenta os amanheceres com o inferno dos pesadelos que não sabem o que é esquecer.
    Vendo melhor, reparo que o escaravelho gigante de garras afiadas com o estetoscópio pendurado numa haste disse que os murmúrios vêm da fossa onde guardo o não esquecido do passado e da amargura em que fiquei petrificado como se esse passado fosse a inculpação da ingenuidade em ter acreditado que podia «ser futuro».
     Agora o escaravelho gigante veste uma bata branca, imperturbável, e vem de seringa em punho como se fosse uma faca de mato dar-me a injecção para que os pesadelos continuem ocultos na fossa esconsa onde tranco o terror de não saber como esquecer.
     Então, os pesadelos acordam a tirania que geriu o usufruto do que fui para me humilharem, ainda mais, e relembrarem, as coisas ditas e as não ditas, as que adiei, tantas vezes, vá lá saber porquê, o amor porque não soube como o declarar, as manhãs tímidas porque não soube como adorar o sol, as palavras mudas por não saber dizer felicidade quando o doce do mel me era oferecido e o pavor em despir a timidez e dizer que queria «ser futuro».
     E foi assim que aqui cheguei a este lugar branco como uma reserva de velharias, guardadas numa gaveta de recordações rançosas, onde, muita vezes, as saudades dançam uma valsa ensandecida.
     Os murmúrios, esses, murmuram a solidão em que me deixaram nesta caixa branca, trancado, junto a outros doidivanas que são todos os que aqui estão. Ainda pedi à bata branca do escaravelho gigante de garras afiadas se os murmúrios não podiam ser substituídos por música, mesmo que só murmurada baixinho para não incomodar o alheamento dos outros parasitas tresloucados que se empurram, todos os dias, nos transportes, a caminho do seu infinito trabalho e, assim, ouviria Pink Floyd, porque são o universo, Mozart por ser que é, Mahler, Albinoni, Bach, ou outros, tantos outros, o que importa?
     Mas não, os murmúrios numa obstinação de demónios, persistem em desfazer-me como se fosse uma folha de plátano na correria ventosa do outono, em regar-me o céu da boca com a solidão de não dizer palavra nenhuma, em percorrer o sem sentido do caminho onde encontrei o nada a que cheguei, depois de tanto o ter percorrido.
     E a mim que só queria «ser futuro», chamam-me agora, Murmúrio.