É SÓ POR CAUSA DAS COISAS
Aqui na aldeia a morte tem andado numa azáfama sem freio. Silenciosa como sempre, manhosa como de costume, ajudada pela maleita que a todos atormenta, lá vai ela, calçando as pantufas de quem nem assenta os pés no chão, rebentando com os ferrolhos das casas, mesmo as mais ilustres para carregar um ou outro que, numa relutância de ais, não se conformam em ir, mas vão.
Há os que dizem, os mais sabidos das coisas consideráveis que a tipa parece afogueada como qualquer vendedor de uma firma de electrodomésticos apostado em atingir, rapidamente, os objectivos anuais de vendas.
Aqui na aldeia já se foram uns quantos e os outros, temendo as coisas consideráveis do além desconhecido, não culpam a senhora dona morte com medo que ela, despeitada, lhes rebente com a fechadura e os arraste pelo dedo grande do pé direito para os levar para parte incerta que, ninguém sabe onde é, mas todos gostariam de saber. Essa coisa que os antigos dizem - quando a malvada carrega alguém na padiola dos defuntos - esbarra num cruzamento com três setas a indicar; azul o céu, laranja o purgatório e vermelho o inferno é coisa que os mais novos acreditam que assim seja porque, habituados que estão ao uso do gps, não acreditam que a morte, antiquíssima como é, seja dada a modernices e necessite das setas para não se enganar no sítio onde vai depositar o desgraçado a quem lhe retirou o ar.
Mas como culpas são culpas e os confins do mistério de Deus são insondáveis o pessoal aqui, na aldeia, começou a olhar de soslaio para o coveiro. Chico André chama-se o homem. É esparso de pensamento, arreigado à duvida, deserdado de muito saber e sustenta com o que lhe dão umas leiras que cultiva e os trocos que recebe por cada funeral uma prole de filhos raquíticos com que foi emprenhando o bucho da mulher escanzelada, tudo na graça do Senhor. O pessoal assusta-se quando o vê. Mudam para o outro lado do caminho para não respirar o mesmo ar que ele. Não o salvam como era costume antes da morte andar neste desacato. Afirmam que têm um pacto com a malvada e pensam que ela lhe dá alguma comissão por cada um que enterra. Quando a junta de freguesia decidiu pagar-lhe um tanto por cada enterro então foi o diabo. Ninguém lhes tirou da cabeça que há um pacto entre eles. Morte, junta e coveiro.
Aqui, na aldeia, Chico André o coveiro, passou a andar abatido, acabrunhado, revoltado, doente e diz-se injustiçado. Depois do esforço de enterrar bem fundo, todos aqueles que a malvada se lembrou levar de súpeto, a ingratidão do povo, pesou-lhe bem fundo. Agradecimentos não queria. Isso era pedir muito a quem não se lembra do sacrifício dos que vivem no lado negro da vida.
Chico André, definhava a indiferença com que o atormentava aquele gente mal agradecida. Que culpa tinha que a malvada carregasse com tantos de cada vez pelo dedo grande do pé direito? O que tinha ele a ver com isso? E, se não fosse ele, os desgraçados ficavam de papo para o ar apodrecer ao sol? E, se não fosse ele, outro haveria de ser a fazer a função? Ou não é assim?
Numa tardinha, depois de ter armazenado mais um, no buraco fundo que abrira na véspera, Chico André, o coveiro, desabafou com Zé Vesúvio, o taberneiro:
«Não querem dar-me a mercê por os enterrar? Pensam que sou eu que tenho a culpa de irem desta para melhor? Zurrapa de gente, lixam-se que quando a malvada me puxar pelo dedo grande do pé direito algum filho da mãe vai ter que me meter na cova bem lá no fundo. Gostava de saber quem? É só por causa das coisas.»